quarta-feira, 30 de julho de 2014

A IGREJA DO PAPA FRANCISCO - Parte I

UM PEQUENO DECÁLOGO 

Artigo de Victor Codina

“Devemos afirmar que é uma ilusão pensar que as reformas e mudanças eclesiais vêm exclusivamente de cima. A história nos ensina que as grandes transformações da Igreja (como também da sociedade...) surgiram debaixo para cima, a partir de onde ordinariamente age o Espírito: desde os leigos, os pobres, as mulheres, a gente marginalizada. Cabe a todos renovar e reformar a Igreja a partir do Evangelho, convertendo-nos a Jesus de Nazaré e ao seu Reino. Sem a cooperação e a iniciativa da base, a Igreja nunca vai mudar.”
A reflexão é do teólogo jesuíta Víctor Codina, em artigo publicado no sítio espanhol Religión Digital, 20-07-2014. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.

Em 28 de fevereiro de 2013, Bento XVI abandonava o Vaticano, de helicóptero, para dirigir-se a Castel Gandolfo. Começava, assim, na Igreja católica o tempo chamado sede vacante, que terminou no dia 13 de março de 2013 com a eleição de Jorge Mario Bergoglio como Papa Francisco.



Mas, esta viagem de Bento XVI a Castel Gandolfo não encerrava apenas o seu pontificado, nem significava apenas uma substituição no Vaticano, mas suporia uma profunda mudança eclesial.
Para compreender esta afirmação devemos nos remontar ao tempo de João XXIII e à convocação do Concílio Vaticano II, em 1959. O Vaticano II (1962-1965) significou o “réquiem do constantinismo”, ou seja, a superação do estilo de Igreja da cristandade vigente desde o século IV e que se reforçou e consolidou no tempo de Gregório VII: uma Igreja convertida em uma grande instituição clerical, centralizada em Roma, fechada ao mundo, única âncora de salvação, uma espécie de grande pirâmide monárquica e vertical, triunfalista e dominadora.
Vaticano II oferece outra imagem de Igreja, Povo de Deus, que caminha com toda a humanidade rumo ao Reino de Deus, que respeita a liberdade religiosa e reconhece que o Espírito do Senhor dirige não apenas a Igreja católica, mas todas as Igrejas cristãs e todas as religiões e todos os povos para a salvação. Daí nasceu a índole misericordiosa, esperançosa e dialogante do Vaticano II, frente ao dogmatismo intransigente e inquisitorial da Igreja cristandade. Foi um verdadeiro Pentecostes, como João XXIII havia desejado e pedido.
Mas, este concílio inaugurado por João XXIII e encerrado por Paulo VI logo suscitou suspeitas, reações contrárias e medos. Criticaram-se os abusos e exageros cometidos em nome do concílio, temia-se a perda da identidade eclesial, preocupava o fato de que se pudesse chegar a uma ruptura e a uma divisão eclesial, eclodiram sentimentos de saudade da velha e tradicional Igreja da Cristandade, a Igreja das catedrais e das Sumas Teológicas...
Isto explica que os últimos anos do pontificado de Paulo VI (alguns acreditam que já a partir da publicação da Encíclica Humanae Vitae sobre a “pílula”, em 1968) e, sobretudo, nos pontificados de João Paulo II e Bento XVI, realizaram-se uma leitura e uma hermenêutica do Vaticano II mais em continuidade com a tradição anterior do que com a novidade e o aggiornamento que havia impulsionado o bom Papa João. A partir de então o impulso conciliador se diluiu e houve freios em todas as instâncias (liturgia, ecumenismo, colegialidade episcopal, autonomia das Igrejas locais, responsabilidade laical, profetismo da vida religiosa, novos sinais dos tempos, novas teologias, inculturação...) e se passou da primavera conciliar ao inverno eclesial.

Sem dúvida, João Paulo II teve um grande dinamismo geopolítico e queria reformar a Igreja e implantar o concílio, mas mantendo inalterada a doutrina e a estrutura eclesial existente. Não é casual que o Papa polonês fizesse parte do grupo minoritário do Vaticano II que dissentia de muitas das propostas conciliares e defendia a chamada “linha cracoviense”.Ratzinger por sua vez, apoiou teologicamente o pontificado de João Paulo II e uma vez eleito pontífice como Bento XVI buscou, sem dúvida, uma renovação eclesial, mas a partir de uma filosofia e uma teologia tão ortodoxas e racionais que fechavam o caminho para uma real inovação na Igreja.

Seria falso deduzir do que foi dito anteriormente que o Vaticano II não produziu frutos positivos, mesmo em meio ao inverno eclesial. Assim como seria falso acreditar que na época da Cristandade não houve grandes elementos de vida e santidade. O Espírito não deixa de vivificar sempre a Igreja e suscita continuamente movimentos de reforma e de retorno ao Evangelho: nunca na Igreja faltaram santos e santas, profetas e místicos, reformadores e renovadores. Mas não se pode ocultar que as consequências eclesiais da postura neoconservadora do pós-concílio foram funestas. Bento XVI, comentando o episódio evangélico da tempestade acalmada, confessava:
“Também hoje a barca da Igreja com o vento contrário da história, navega pelo oceano agitado do tempo. Tem-se muitas vezes a impressão de que está para se afundar. Mas o Senhor está presente”.
Na realidade, não era apenas o vento adverso da história que sacudia a barca eclesial, mas a própria estrutura da barca, muito pesada e com muitas rachaduras. Se a isto acrescentarmos os abusos sexuais do clero e os escândalos econômicos do Banco Vaticano, compreender-se-á o descrédito a que havia chegado a Igreja e o êxodo crescente de fiéis que abandonaram a Igreja. Não é estranho que Bento XVI, com grande humildade, realismo e coragem, renunciasse e afirmasse: “Já não tenho mais forças”.

(...continua)

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