sexta-feira, 15 de agosto de 2014

EXORTAÇÃO APOSTÓLICA DE PAPA FRANCISCO - PARTE XVIX

Carismas ao serviço da comunhão evangelizadora


130. O Espírito Santo enriquece toda a Igreja evangelizadora também com diferentes carismas. São dons para renovar e edificar a Igreja. Não se trata de um património fechado, entregue a um grupo para que o guarde; mas são presentes do Espírito integrados no corpo eclesial, atraídos para o centro que é Cristo, donde são canalizados num impulso evangelizador. Um sinal claro da autenticidade dum carisma é a sua eclesialidade, a sua capacidade de se integrar harmoniosamente na vida do povo santo de Deus para o bem de todos. Uma verdadeira novidade suscitada pelo Espírito não precisa de fazer sombra sobre outras espiritualidades e dons para se afirmar a si mesma. Quanto mais um carisma dirigir o seu olhar para o coração do Evangelho, tanto mais eclesial será o seu exercício. É na comunhão, mesmo que seja fadigosa, que um carisma se revela autêntica e misteriosamente fecundo. Se vive este desafio, a Igreja pode ser um modelo para a paz no mundo.

131. As diferenças entre as pessoas e as comunidades por vezes são incómodas, mas o Espírito Santo, que suscita esta diversidade, de tudo pode tirar algo de bom e transformá-lo em dinamismo evangelizador que actua por atracção. A diversidade deve ser sempre conciliada com a ajuda do Espírito Santo; só Ele pode suscitar a diversidade, a pluralidade, a multiplicidade e, ao mesmo tempo, realizar a unidade. Ao invés, quando somos nós que pretendemos a diversidade e nos fechamos em nossos particularismos, em nossos exclusivismos, provocamos a divisão; e, por outro lado, quando somos nós que queremos construir a unidade com os nossos planos humanos, acabamos por impor a uniformidade, a homologação. Isto não ajuda a missão da Igreja.


Cultura, pensamento e educação


132. O anúncio às culturas implica também um anúncio às culturas profissionais, científicas e académicas. É o encontro entre a fé, a razão e as ciências, que visa desenvolver um novo discurso sobre a credibilidade, uma apologética original que ajude a criar as predisposições para que o Evangelho seja escutado por todos. Quando algumas categorias da razão e das ciências são acolhidas no anúncio da mensagem, tais categorias tornam-se instrumentos de evangelização; é a água transformada em vinho. É aquilo que, uma vez assumido, não só é redimido, mas torna-se instrumento do Espírito para iluminar e renovar o mundo.

133. Uma vez que não basta a preocupação do evangelizador por chegar a cada pessoa, mas o Evangelho também se anuncia às culturas no seu conjunto, a teologia – e não só a teologia pastoral – em diálogo com outras ciências e experiências humanas tem grande importância para pensar como fazer chegar a proposta do Evangelho à variedade dos contextos culturais e dos destinatários. A Igreja, comprometida na evangelização, aprecia e encoraja o carisma dos teólogos e o seu esforço na investigação teológica, que promove o diálogo com o mundo da cultura e da ciência. Faço apelo aos teólogos para que cumpram este serviço como parte da missão salvífica da Igreja. Mas, para isso, é necessário que tenham a peito a finalidade evangelizadora da Igreja e da própria teologia, e não se contentem com uma teologia de gabinete.

134. As universidades são um âmbito privilegiado para pensar e desenvolver este compromisso de evangelização de modo interdisciplinar e inclusivo. As escolas católicas, que sempre procuram conjugar a tarefa educacional com o anúncio explícito do Evangelho, constituem uma contribuição muito válida para a evangelização da cultura, mesmo em países e cidades onde uma situação adversa nos incentiva a usar a nossa criatividade para se encontrar os caminhos adequados.


2. A homilia

135. Consideremos agora a pregação dentro da Liturgia, que requer uma séria avaliação por parte dos Pastores. Deter-me-ei particularmente, e até com certa meticulosidade, na homilia e sua preparação, porque são muitas as reclamações relacionadas com este ministério importante, e não podemos fechar os ouvidos. A homilia é o ponto de comparação para avaliar a proximidade e a capacidade de encontro de um Pastor com o seu povo. De facto, sabemos que os fiéis lhe dão muita importância; e, muitas vezes, tanto eles como os próprios ministros ordenados sofrem: uns a ouvir e os outros a pregar. É triste que assim seja. A homilia pode ser, realmente, uma experiência intensa e feliz do Espírito, um consolador encontro com a Palavra, uma fonte constante de renovação e crescimento. 136. Renovemos a nossa confiança na pregação, que se funda na convicção de que é Deus que deseja alcançar os outros através do pregador e de que Ele mostra o seu poder através da palavra humana. São Paulo fala vigorosamente sobre a necessidade de pregar, porque o Senhor quis chegar aos outros por meio também da nossa palavra (cf. Rm 10, 14-17). Com a palavra, Nosso Senhor conquistou o coração da gente. De todas as partes, vinham para O ouvir (cf. Mc 1, 45). Ficavam maravilhados, «bebendo» os seus ensinamentos (cf. Mc 6, 2). Sentiam que lhes falava como quem tem autoridade (cf. Mc 1, 27). E os Apóstolos, que Jesus estabelecera «para estarem com Ele e para os enviar a pregar» (Mc 3, 14), atraíram para o seio da Igreja todos os povos com a palavra (cf. Mc 16, 15.20).


O contexto litúrgico

137. Agora é oportuno recordar que «a proclamação litúrgica da Palavra de Deus, principalmente no contexto da assembleia eucarística, não é tanto um momento de meditação e de catequese, como sobretudo o diálogo de Deus com o seu povo, no qual se proclamam as maravilhas da salvação e se propõem continuamente as exigências da Aliança». Reveste-se de um valor especial a homilia, derivado do seu contexto eucarístico, que supera toda a catequese por ser o momento mais alto do diálogo entre Deus e o seu povo, antes da comunhão sacramental. A homilia é um retomar este diálogo que já está estabelecido entre o Senhor e o seu povo. Aquele que prega deve conhecer o coração da sua comunidade para identificar onde está vivo e ardente o desejo de Deus e também onde é que este diálogo de amor foi sufocado ou não pôde dar fruto.

138. A homilia não pode ser um espectáculo de divertimento, não corresponde à lógica dos recursos mediáticos, mas deve dar fervor e significado à celebração. É um género peculiar, já que se trata de uma pregação no quadro duma celebração litúrgica; por conseguinte, deve ser breve e evitar que se pareça com uma conferência ou uma lição. O pregador pode até ser capaz de manter vivo o interesse das pessoas por uma hora, mas assim a sua palavra torna-se mais importante que a celebração da fé. Se a homilia se prolonga demasiado, lesa duas características da celebração litúrgica: a harmonia entre as suas partes e o seu ritmo. Quando a pregação se realiza no contexto da Liturgia, incorpora-se como parte da oferenda que se entrega ao Pai e como mediação da graça que Cristo derrama na celebração. Este mesmo contexto exige que a pregação oriente a assembleia, e também o pregador, para uma comunhão com Cristo na Eucaristia, que transforme a vida. Isto requer que a palavra do pregador não ocupe um lugar excessivo, para que o Senhor brilhe mais que o ministro.

(continua...)

A IGREJA DO PAPA FRANCISCO - Parte Final

Artigo de Victor Codina


A Igreja do Papa Francisco

Depois de um ano, qual é o balanço do pontificado de Francisco, qual é a imagem da Igreja de Francisco que vai se desenhando? Quais são as características da Igreja segundo Francisco? Apresentamos um pequeno decálogo.

1. De uma Igreja poderosa, distante, fria, endurecida, medrosa, reacionária, da qual as pessoas se afastam e abandonam... a uma Igreja pobre, simples, próxima, acolhedora, sincera, realista, que promove a cultura do encontro e da ternura. O novo Bispo de Roma, Francisco, reconhece-se pecador e pede orações; recorda que a Igreja necessita de uma conversão e uma contínua reforma evangélica, uma reforma à moda Francisco de Assis.

2. De uma Igreja moralista obsessivamente preocupada com o aborto, com o controle de natalidade, com o casamento homossexual... a uma Igreja que vai ao essencial, que se centra em Jesus Cristo contemplado e adorado, recupera o Evangelho, anuncia a grande Boa Notícia da salvação em Cristo, pois Jesus é o único que atrai; quer difundir o cheiro do Evangelho de Jesus, pede aos jovens que não se envergonhem de ser cristãos, que coloquem Jesus Cristo no centro das suas vidas, a fé em Jesus Cristo é coisa séria, não uma fé descafeinada. Não pode ser um cristianismo de meras devoções, sem Jesus. O Papa, assim como Pedro, não tem ouro nem prata, mas traz o mais valioso: Jesus Cristo, Ele é a única riqueza. Mas um Jesus Cristo morto e ressuscitado; não se deve ficar no sepulcro, não se deve ser cristão de quaresma sem Páscoa... A alegria do Evangelho enche o coração de todos os que se encontram com Jesus.

3. De uma Igreja centrada no pecado e que fez do sacramento da confissão uma tortura e converteu o acesso aos sacramentos em uma alfândega inquisitorial... a uma Igreja da misericórdia de Deus, da ternura, da compaixão, com entranhas maternais, que reflete a misericórdia do Pai, uma Igreja sobretudo hospital de campanha que cura feridas de emergência, que cuida da criação, na qual os sacramentos são para todos, não só para os perfeitos. A convocação de um Sínodo sobre a Família e o questionário que enviou e que trata de temas pastorais urgentes como a situação dos divorciados recasados, a união de homossexuais, as relações pré-matrimoniais, o controle de natalidade e o magistério sobre a moral sexual... indica que há um desejo de ampliar o campo da misericórdia e estendê-lo a todas as situações conflitivas.

4. De uma Igreja centrada nela mesma, autorrefencial, preocupada com o proselitismo... a uma Igreja dos pobres preocupada sobretudo com a dor e o sofrimento humano, a guerra, a fome, o desemprego juvenil, os anciãos, onde os últimos sejam os primeiros, onde não se possa servir a Deus e ao dinheiro; uma Igreja profética, livre em relação aos poderes deste mundo; na Evangelii Gaudium afirma que o atual sistema econômico baseado na idolatria do dinheiro é injusto, pois enriquece alguns poucos e converte uma grande maioria em massas sobrantes, é um sistema excludente que mata; por isso, lança um “não” a uma economia de exclusão, um “não” à nova idolatria do dinheiro, um “não” ao dinheiro que governa em vez de servir, um “não” à desigualdade que gera violência. Em Lampedusa, critica a atitude dos países ricos em relação aos emigrantes africanos e asiáticos, muitos dos quais morrem na tentativa de chegar às costas europeias: é uma vergonha, vivemos na bolha do consumo e com o coração anestesiado diante do sofrimento alheio; no Brasil, diz aos jovens que arrumem confusão e sejam revolucionários em busca de um mundo melhor e mais justo; afirma que as confissões religiosas do mundo inteiro devem unir-se para resolver o problema da fome e da falta de educação...

5. De uma Igreja fechada em si mesma, relíquia do passado, com tendência a olhar para o próprio umbigo, com sabor de estufa, que espera que os outros venham até ela... a uma Igreja que sai às ruas, “rueia a fé”, vai às margens sociais e existenciais, às fronteiras, aos que estão longe, mesmo sob o risco de sofrer acidentes; não teme uma Igreja minoritária e pequena, contanto que seja semente e fermento, que abra caminhos novos, que vá sem medo para servir, uma Igreja ao ar livre, que sai às sarjetas do mundo, uma Igreja em estado de missão.

6. De uma Igreja que discrimina os que pensam diferente, os diversos, os outros... a uma Igreja que respeita os que seguem sua própria consciência, as outras religiões, os ateus, os homossexuais, dialoga com não crentes, com judeus, nossos irmãos maiores, uma Igreja de portas abertas, atenta aos novos sinais dos tempos.

7. De uma Igreja com tendência restauracionista e que tem saudades do passado... a uma Igreja que considera que o Vaticano II é irreversível, que é preciso implantar suas intuições sobre a colegialidade, evitar o centralismo e o autoritarismo no governo, caminhar em meio às diferenças. O próprio título deBispo de Roma é uma confirmação da colegialidade episcopal, dacolegialidade com seus irmãos bispos. O Papa reconhece que não tem resposta para todas as questões, que é preciso reformar o papado, que é preciso dar responsabilidades aos leigos, dar maior protagonismo à mulher, desclericalizar a Igreja, pois o clericalismo não é cristão.

8. De uma Igreja com pastores fechados em suas paróquias, clérigos de despacho, que buscam fazer carreira, que estão no laboratório e às vezes acabam sendo colecionadores de antiguidades, com bispos que sempre estão nos aeroportos... a pastores que cheiram a ovelha, que caminham na frente, atrás e no meio do povo; o carreirismo é a lepra do papado, a cúria é vaticanocêntricae facilmente transfere sua visão ao mundo.

9. De uma Igreja envelhecida, triste, com gente com cara de cadáver ou com sorriso de aeromoça... a uma Igreja jovem e alegre, fermento na sociedade, com a alegria e a liberdade do Espírito, com luz e transparência, sem nada a ocultar, com flores na janela e cheiro de lar, onde os jovens sejam protagonistas, pois são como a menina dos olhos da Igreja.

10. De uma Igreja ONG piedosa, clerical, machista, monolítica, narcisista... a uma Igreja Casa e Povo de Deus, mesa mais que estrado, que respeita a diversidade, onde os leigos, as mulheres, as famílias jogam um papel relevante. É a Igreja de Aparecida, de discípulos e missionários para que os nossos povos em Cristo tenham vida, uma casa eclesial onde reina a alegria.

Na realidade, depois de um ano de sua gestão pastoral como Bispo de Roma podemos afirmar que com Francisco retomou-se o Vaticano II que havia ficado de algum modo silenciado e estacionado. Não inventa nada de novo, reassume o impulso pentecostal do Vaticano II. A Igreja do Papa Francisco no fundo é a Igreja do Vaticano II, a mesma Igreja que sonhou João XXIII e que até agora havia sido fortemente freada e diluída. Volta a renascer uma primavera eclesial.
Não é pura casualidade que Bergoglio provenha da América Latina, uma Igreja que recebeu o Vaticano II com grande criatividade e profundidade: a Igreja deMedellín e Aparecida, a Igreja com alguns bispos verdadeiros Santos Padres da Igreja dos pobres – como Helder Câmara e Romero –, a Igreja das comunidades de base, da Bíblia devolvida ao povo, a Igreja da profunda religiosidade popular dos pobres, a Igreja de leigos comprometidos com a justiça e com a pastoral, a Igreja de uma vida religiosa inserida entre os pobres, a Igreja de numerosos mártires assassinados por defenderem a fé e a justiça.

Questionamentos e interrogações


É muito o que o Papa Francisco realizou em seu primeiro ano de pontificado, mas é muito o que ainda resta por fazer. Cabe a Francisco levar a término questões que o Concílio iniciou, mas não chegou a concretizar, como o modo de eleição dos bispos, fazer que os sínodos sejam não apenas consultivos, mas deliberativos, favorecer a autonomia e a responsabilidade das Igrejas locais...
E enfrentar o que o Vaticano II não tratou, mas que são tarefas e desafios urgentes: reforma do papado e da cúria, abandono de chefatura do Estado Vaticano, mudar o modo de eleição do Papa, revisão da estrutura de cardeais e núncios, abandonar o episcopado honorífico e sem diocese real dos dirigentes dos dicastérios da cúria, repensar o papel da mulher na Igreja, promover a ordenação de homens casados, revisar a moral sexual e matrimonial, a pastoral com os divorciados recasados, o problema da homossexualidade, a relação com os teólogos, assumir o grande desafio ecológico...
Acrescentemos a tudo isso a necessidade de responder à problemática religiosa e espiritual que surge do novo contexto sócio-cultural, científico e técnico do mundo de hoje, do novo tempo axial que está aparecendo com paradigmas que rompem os esquemas religiosos provenientes do neolítico – centrados no sacerdote, no altar e no sacrifício –, reagir diante das novas formas de espiritualidade e de agnosticismo, etc. Atualmente, o problema já não é, como noVaticano II, perguntar: “Igreja, o que dizes de ti mesma”, mas “Igreja, o que dizes sobre o mistério de Deus”
Poderá um só homem levar a cabo estas reformas tão necessárias e urgentes? Não é carga excessiva para o primado de Pedro? Não deveria ser uma tarefa colegial de todos os bispos, mais ainda de toda a Igreja? Não é o próprioFrancisco quem nos pede que todos sejam “audazes e criativos”?
Devemos afirmar que é uma ilusão pensar que as reformas e mudanças eclesiais vêm exclusivamente de cima. A história nos ensina que as grandes transformações da Igreja (como também da sociedade...) surgiram debaixo para cima, a partir de onde ordinariamente age o Espírito: desde os leigos, os pobres, as mulheres, a gente marginalizada. Cabe a todos renovar e reformar a Igreja a partir do Evangelho, convertendo-nos a Jesus de Nazaré e ao seu Reino. Sem a cooperação e a iniciativa da base, a Igreja nunca vai mudar.




Enquanto agradecemos ao Senhor pelo grande dom doPapa Francisco que devolveu a alegria à Igreja, estejamos dispostos a colaborar na renovação da Igreja. O Papa Franciscojá nos abriu o caminho.
Terminamos com uma poesia de Rafael Alberti(1902-1999), poeta espanhol, na qual simula um diálogo entre a estátua de bronze de Pedro doVaticano e o Senhor:


“Diz, Jesus Cristo

Por que me beijam tanto os pés?
Sou São Pedro aqui sentado,
em bronze imobilizado,
não posso olhar para o lado nem dar um pontapé,
pois tenho os pés gastados, como vês.
Faz um milagre, Senhor.
Deixa-me descer ao rio
voltar a ser pescador
que é o que sou”.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

EXORTAÇÃO APOSTÓLICA DE PAPA FRANCISCO - PARTE XVIII

SOBRE O ANÚNCIO DO EVANGELHO NO MUNDO
ATUAL AO EPISCOPADO, AO CLERO ÀS PESSOAS CONSAGRADAS E AOS FIÉIS LEIGOS


Todos somos discípulos missionários


119. Em todos os baptizados, desde o primeiro ao último, actua a força santificadora do Espírito que impele a evangelizar. O povo de Deus é santo em virtude desta unção, que o torna infalível «in credendo», ou seja, ao crer, não pode enganar-se, ainda que não encontre palavras para explicar a sua fé. O Espírito guia-o na verdade e condu-lo à salvação. Como parte do seu mistério de amor pela humanidade, Deus dota a totalidade dos fiéis com um instinto da fé – o sensus fidei – que os ajuda a discernir o que vem realmente de Deus. A presença do Espírito confere aos cristãos uma certa conaturalidade com as realidades divinas e uma sabedoria que lhes permite captá-las intuitivamente, embora não possuam os meios adequados para expressá-las com precisão.

120. Em virtude do Baptismo recebido, cada membro do povo de Deus tornou-se discípulo missionário (cf. Mt 28, 19). Cada um dos baptizados, independentemente da própria função na Igreja e do grau de instrução da sua fé, é um sujeito activo de evangelização, e seria inapropriado pensar num esquema de evangelização realizado por agentes qualificados enquanto o resto do povo fiel seria apenas receptor das suas acções. A nova evangelização deve implicar um novo protagonismo de cada um dos baptizados. Esta convicção transforma-se num apelo dirigido a cada cristão para que ninguém renuncie ao seu compromisso de evangelização, porque, se uma pessoa experimentou verdadeiramente o amor de Deus que o salva, não precisa de muito tempo de preparação para sair a anunciá-lo, não pode esperar que lhe dêem muitas lições ou longas instruções. Cada cristão é missionário na medida em que se encontrou com o amor de Deus em Cristo Jesus; não digamos mais que somos «discípulos» e «missionários», mas sempre que somos «discípulos missionários». Se não estivermos convencidos disto, olhemos para os primeiros discípulos, que logo depois de terem conhecido o olhar de Jesus, saíram proclamando cheios de alegria: «Encontrámos o Messias» (Jo 1, 41). A Samaritana, logo que terminou o seu diálogo com Jesus, tornou-se missionária, e muitos samaritanos acreditaram em Jesus «devido às palavras da mulher» (Jo 4, 39). Também São Paulo, depois do seu encontro com Jesus Cristo, «começou imediatamente a proclamar (…) que Jesus era o Filho de Deus» (Act 9, 20). Porque esperamos nós?

121. Certamente todos somos chamados a crescer como evangelizadores. Devemos procurar simultaneamente uma melhor formação, um aprofundamento do nosso amor e um testemunho mais claro do Evangelho. Neste sentido, todos devemos deixar que os outros nos evangelizem constantemente; isto não significa que devemos renunciar à missão evangelizadora, mas encontrar o modo de comunicar Jesus que corresponda à situação em que vivemos. Seja como for, todos somos chamados a dar aos outros o testemunho explícito do amor salvífico do Senhor, que, sem olhar às nossas imperfeições, nos oferece a sua proximidade, a sua Palavra, a sua força, e dá sentido à nossa vida. O teu coração sabe que a vida não é a mesma coisa sem Ele; pois bem, aquilo que descobriste, o que te ajuda a viver e te dá esperança, isso é o que deves comunicar aos outros. A nossa imperfeição não deve ser desculpa; pelo contrário, a missão é um estímulo constante para não nos acomodarmos na mediocridade, mas continuarmos a crescer. O testemunho de fé, que todo o cristão é chamado a oferecer, implica dizer como São Paulo: «Não que já o tenha alcançado ou já seja perfeito; mas corro para ver se o alcanço, (…) lançando-me para o que vem à frente» (Fl 3, 12-13).


A força evangelizadora da piedade popular

122. Da mesma forma, podemos pensar que os diferentes povos, nos quais foi inculturado o Evangelho, são sujeitos colectivos activos, agentes da evangelização. Assim é, porque cada povo é o criador da sua cultura e o protagonista da sua história. A cultura é algo de dinâmico, que um povo recria constantemente, e cada geração transmite à seguinte um conjunto de atitudes relativas às diversas situações existenciais, que esta nova geração deve reelaborar face aos próprios desafios. O ser humano «é simultaneamente filho e pai da cultura onde está inserido». Quando o Evangelho se inculturou num povo, no seu processo de transmissão cultural também transmite a fé de maneira sempre nova; daí a importância da evangelização entendida como inculturação. Cada porção do povo de Deus, ao traduzir na vida o dom de Deus segundo a sua índole própria, dá testemunho da fé recebida e enriquece-a com novas expressões que falam por si. Pode dizer-se que «o povo se evangeliza continuamente a si mesmo». Aqui ganha importância a piedade popular, verdadeira expressão da actividade missionária espontânea do povo de Deus. Trata-se de uma realidade em permanente desenvolvimento, cujo protagonista é o Espírito Santo.

123. Na piedade popular, pode-se captar a modalidade em que a fé recebida se encarnou numa cultura e continua a transmitir-se. Vista por vezes com desconfiança, a piedade popular foi objecto de revalorização nas décadas posteriores ao Concílio. Quem deu um impulso decisivo nesta direcção, foi Paulo VI na sua Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi. Nela explica que a piedade popular «traduz em si uma certa sede de Deus, que somente os pobres e os simples podem experimentar» e «torna as pessoas capazes para terem rasgos de generosidade e predispõe-nas para o sacrifício até ao heroísmo, quando se trata de manifestar a fé». Já mais perto dos nossos dias, Bento XVI, na América Latina, assinalou que se trata de um «precioso tesouro da Igreja Católica» e que nela «aparece a alma dos povos latino-americanos».

124. No Documento de Aparecida, descrevem-se as riquezas que o Espírito Santo explicita na piedade popular por sua iniciativa gratuita. Naquele amado Continente, onde uma multidão imensa de cristãos exprime a sua fé através da piedade popular, os Bispos chamam-na também «espiritualidade popular» ou «mística popular». Trata-se de uma verdadeira «espiritualidade encarnada na cultura dos simples». Não é vazia de conteúdos, mas descobre-os e exprime-os mais pela via simbólica do que pelo uso da razão instrumental e, no acto de fé, acentua mais o credere in Deum que o credere Deum. É «uma maneira legítima de viver a fé, um modo de se sentir parte da Igreja e uma forma de ser missionários»; comporta a graça da missionariedade, do sair de si e do peregrinar: «O caminhar juntos para os santuários e o participar em outras manifestações da piedade popular, levando também os filhos ou convidando a outras pessoas, é em si mesmo um gesto evangelizador». Não coarctemos nem pretendamos controlar esta força missionária!

125. Para compreender esta necessidade, é preciso abordá-la com o olhar do Bom Pastor, que não procura julgar mas amar. Só a partir da conaturalidade afectiva que dá o amor é que podemos apreciar a vida teologal presente na piedade dos povos cristãos, especialmente nos pobres. Penso na fé firme das mães ao pé da cama do filho doente, que se agarram a um terço ainda que não saibam elencar os artigos do Credo; ou na carga imensa de esperança contida numa vela que se acende, numa casa humilde, para pedir ajuda a Maria, ou nos olhares de
profundo amor a Cristo crucificado. Quem ama o povo fiel de Deus, não pode ver estas acções unicamente como uma busca natural da divindade; são a manifestação duma vida teologal animada pela acção do Espírito Santo, que foi derramado em nossos corações (cf. Rm 5, 5).

126. Na piedade popular, por ser fruto do Evangelho inculturado, subjaz uma força activamente evangelizadora que não podemos subestimar: seria ignorar a obra do Espírito Santo. Ao contrário, somos chamados a encorajá-la e fortalecê-la para aprofundar o processo de inculturação, que é uma realidade nunca acabada. As expressões da piedade popular têm muito que nos ensinar e, para quem as sabe ler, são um lugar teológico a que devemos prestar atenção particularmente na hora de pensar a nova evangelização.
De pessoa a pessoa

127. Hoje que a Igreja deseja viver uma profunda renovação missionária, há uma forma de pregação que nos compete a todos como tarefa diária: é cada um levar o Evangelho às pessoas com quem se encontra, tanto aos mais íntimos como aos desconhecidos. É a pregação informal que se pode realizar durante uma conversa, e é também a que realiza um missionário quando visita um lar. Ser discípulo significa ter a disposição permanente de levar aos outros o amor de Jesus; e isto sucede espontaneamente em qualquer lugar: na rua, na praça, no trabalho, num caminho.

128. Nesta pregação, sempre respeitosa e amável, o primeiro momento é um diálogo pessoal, no qual a outra pessoa se exprime e partilha as suas alegrias, as suas esperanças, as preocupações com os seus entes queridos e muitas coisas que enchem o coração. Só depois desta conversa é que se pode apresentar-lhe a Palavra, seja pela leitura de algum versículo ou de modo narrativo, mas sempre recordando o anúncio fundamental: o amor pessoal de Deus que Se fez homem, entregou-Se a Si mesmo por nós e, vivo, oferece a sua salvação e a sua amizade. É o anúncio que se partilha com uma atitude humilde e testemunhal de quem sempre sabe aprender, com a consciência de que esta mensagem é tão rica e profunda que sempre nos ultrapassa. Umas vezes exprime-se de maneira mais directa, outras através dum testemunho pessoal, uma história, um gesto, ou outra forma que o próprio Espírito Santo possa suscitar numa circunstância concreta. Se parecer prudente e houver condições, é bom que este encontro fraterno e missionário conclua com uma breve oração que se relacione com as preocupações que a pessoa manifestou. Assim ela sentirá mais claramente que foi ouvida e interpretada, que a sua situação foi posta nas mãos de Deus, e reconhecerá que a Palavra de Deus fala realmente à sua própria vida.

129. Contudo não se deve pensar que o anúncio evangélico tenha de ser transmitido sempre com determinadas fórmulas pré-estabelecidas ou com palavras concretas que exprimam um conteúdo absolutamente invariável. Transmite-se com formas tão diversas que seria impossível descrevê-las ou catalogá-las, e cujo sujeito colectivo é o povo de Deus com seus gestos e sinais inumeráveis. Por conseguinte, se o Evangelho se encarnou numa cultura, já não se comunica apenas através do anúncio de pessoa a pessoa. Isto deve fazer-nos pensar que, nos países onde o cristianismo é minoria, para além de animar cada baptizado a anunciar o Evangelho, as Igrejas particulares hão-de promover activamente formas, pelo menos incipientes, de inculturação. Enfim, o que se deve procurar é que a pregação do Evangelho, expressa com categorias próprias da cultura onde é anunciado, provoque uma nova síntese com essa cultura. Embora estes processos sejam sempre lentos, às vezes o medo paralisa-nos demasiado. Se deixamos que as dúvidas e os medos sufoquem toda a ousadia, é possível que, em vez de sermos criativos, nos deixemos simplesmente ficar cómodos sem provocar qualquer avanço e, neste caso, não seremos participantes dos processos históricos com a nossa cooperação, mas simplesmente espectadores duma estagnação estéril da Igreja. 

A IGREJA DO PAPA FRANCISCO - Parte II

Os gestos simbólicos do Papa Francisco


 O novo Papa Francisco, antes de pronunciar discursos e escrever encíclicas foi realizando uma série de gestos simbólicos de grande carga significativa que foram facilmente captados por todo o mundo e foram amplamente difundidos pelos meios de comunicação.

Estes gestos foram mudando o ambiente eclesial dominante, aproximaram a Igreja do mundo de hoje e suscitaram a esperança de uma nova primavera eclesial: proclama-se simplesmente Bispo de Roma, assume o nome de Francisco, o poverello de Assis que queria reformar a Igreja, pede orações por ele ao povo, beija um menino deficiente e abraça um homem com o rosto totalmente deformado, na Quinta-Feira Santa lava os pés de uma jovem muçulmana de uma prisão, em Assis come com crianças com síndrome de Down, vai à ilha de Lampedusa em sua primeira viagem para fora de Roma e joga uma coroa de flores amarelas e brancas ao mar em memória dos emigrantes mortos, convoca um dia mundial de oração e de jejum pela paz na Síria interpelado fortemente pelos rostos das crianças mortas por armas químicas, usa seus sapatos velhos em vez dos sapatos vermelhos de seu antecessor, opta por não morar nos Palácios Apostólicos Vaticanos, mas na residência de Santa Marta, viaja por Roma em um carro simples e pequeno para não escandalizar as pessoas dos bairros periféricos populares, responde a perguntas de um jornalista não crente, convida rabinos da Argentina para visitá-lo em Santa Marta, presenteia sapatinhos para o neto de Cristina Fernández de Kirchner, recebe Gustavo Gutiérrez, o pai da Teologia da Libertação, leva um ramo de flores à sepultura do Pe. Pedro Arrupe, convida quatro mendigos para o seu aniversário, visita favelas no Rio e casas de migrantes africanos em Roma... Estas “florzinhas do Papa Francisco”, assim como as “florzinhas de João XXIII”, foram facilmente entendidas pelo povo.

Os especialistas em semiótica ressaltam o valor significativo dos gestos simbólicos, que vão além das palavras, pois os símbolos sempre dão o que pensar. Isto é verdade, mas à margem desta explicação semiótica, há outra razão mais profunda que explica esta mudança de receptividade eclesial e mundial: estes gestos simbólicos de Francisco têm um profundo sabor evangélico, têm o cheiro do Evangelho, de Jesus de Nazaré. Por isso, não apenas seus gestos, mas também suas palavras são acolhidas agora de uma forma nova.
O que Francisco diz e faz não é senão traduzir o Evangelho para o mundo de hoje: está mais preocupado com a fome no mundo do que com os problemas intraeclesiais, afirma que mais do que se centrar obsessivamente nos problemas morais é preciso anunciar a grande alegria da salvação que vem de Jesus, sonha que a Igreja seja uma Igreja pobre e dos pobres.
Pouco a pouco foi acrescentando aos gestos simbólicos mensagens de grande conteúdo pastoral, desde as suas homilias diárias na Capela de Santa Marta até a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. Se João Paulo II e Bento XVI eram professores universitários,Francisco é, sobretudo, pastor, como João XXIII.


Mudou totalmente o clima pastoral, há um ar novo vindo desta vez do Sul, “do fim do mundo”, do mundo dos pobres. Os gestos e palavras de Francisco não são fruto de uma improvisação, mas consequência do seu trabalho pastoral emBuenos Aires, do seu contato com o povo, com as favelas, com os padres “villeros”. Mudou também o clima eclesial, há alegria e entusiasmo entre os fiéis, há expectativa e surpresa nos ambientes sociais e políticos que o nomearam o Homem do Ano; 2013 foi o ano do Papa Francisco.

(....continua)