I
Papa Bento XVI
(...continuação)
Papa Bento XVI
(...continuação)
6. A renovação da Igreja realiza-se também através do testemunho
prestado pela vida dos crentes: de facto, os cristãos são chamados a fazer
brilhar, com a sua própria vida no mundo, a Palavra de verdade que o Senhor
Jesus nos deixou. O próprio Concílio, na Constituição dogmática Lumen gentium,
afirma: «Enquanto Cristo “santo, inocente, imaculado” (Heb 7, 26), não conheceu
o pecado (cf. 2 Cor 5, 21), mas veio apenas expiar os pecados do povo (cf. Heb
2, 17), a Igreja, contendo pecadores no seu próprio seio, simultaneamente santa
e sempre necessitada de purificação, exercita continuamente a penitência e a
renovação. A Igreja “prossegue a sua peregrinação no meio das perseguições do
mundo e das consolações de Deus”, anunciando a cruz e a morte do Senhor até que
Ele venha (cf. 1 Cor 11, 26). Mas é robustecida pela força do Senhor
ressuscitado, de modo a vencer, pela paciência e pela caridade, as suas
aflições e dificuldades tanto internas como externas, e a revelar, velada mas
fielmente, o seu mistério, até que por fim se manifeste em plena luz».
Nesta perspectiva, o Ano da Fé é convite para uma autêntica e renovada
conversão ao Senhor, único Salvador do mundo. No mistério da sua morte e
ressurreição, Deus revelou plenamente o Amor que salva e chama os homens à
conversão de vida por meio da remissão dos pecados (cf. Act 5, 31). Para o
apóstolo Paulo, este amor introduz o homem numa vida nova: «Pelo Baptismo fomos
sepultados com Ele na morte, para que, tal como Cristo foi ressuscitado de
entre os mortos pela glória do Pai, também nós caminhemos numa vida nova» (Rm
6, 4). Em virtude da fé, esta vida nova plasma toda a existência humana segundo
a novidade radical da ressurreição. Na medida da sua livre disponibilidade, os
pensamentos e os afectos, a mentalidade e o comportamento do homem vão sendo
pouco a pouco purificados e transformados, ao longo de um itinerário jamais
completamente terminado nesta vida. A «fé, que actua pelo amor» (Gl 5, 6),
torna-se um novo critério de entendimento e de acção, que muda toda a vida do
homem (cf. Rm 12, 2; Cl 3, 9-10; Ef 4, 20-29; 2 Cor 5, 17).
7. «Caritas Christi urget nos – o amor de Cristo nos impele» (2 Cor 5, 14): é o
amor de Cristo que enche os nossos corações e nos impele a evangelizar. Hoje,
como outrora, Ele envia-nos pelas estradas do mundo para proclamar o seu
Evangelho a todos os povos da terra (cf. Mt 28, 19). Com o seu amor, Jesus
Cristo atrai a Si os homens de cada geração: em todo o tempo, Ele convoca a
Igreja confiando-lhe o anúncio do Evangelho, com um mandato que é sempre novo.
Por isso, também hoje é necessário um empenho eclesial mais convicto a favor
duma nova evangelização, para descobrir de novo a alegria de crer e reencontrar
o entusiasmo de comunicar a fé. Na descoberta diária do seu amor, ganha força e
vigor o compromisso missionário dos crentes, que jamais pode faltar. Com
efeito, a fé cresce quando é vivida como experiência de um amor recebido e é
comunicada como experiência de graça e de alegria. A fé torna-nos fecundos,
porque alarga o coração com a esperança e permite oferecer um testemunho que é
capaz de gerar: de facto, abre o coração e a mente dos ouvintes para acolherem
o convite do Senhor a aderir à sua Palavra a fim de se tornarem seus
discípulos. Os crentes – atesta Santo Agostinho – «fortificam-se acreditando».
O Santo Bispo de Hipona tinha boas razões para falar assim. Como sabemos, a sua
vida foi uma busca contínua da beleza da fé enquanto o seu coração não
encontrou descanso em Deus. Os seus numerosos escritos, onde se explica a
importância de crer e a verdade da fé, permaneceram até aos nossos dias como um
património de riqueza incomparável e consentem ainda a tantas pessoas à procura
de Deus de encontrarem o justo percurso para chegar à «porta da fé».
Por conseguinte, só acreditando é que a fé cresce e se revigora; não há outra
possibilidade de adquirir certeza sobre a própria vida, senão abandonar-se
progressivamente nas mãos de um amor que se experimenta cada vez maior porque
tem a sua origem em Deus.
8. Nesta feliz ocorrência, pretendo convidar os Irmãos Bispos de todo o mundo para
que se unam ao Sucessor de Pedro, no tempo de graça espiritual que o Senhor nos
oferece, a fim de comemorar o dom precioso da fé. Queremos celebrar este Ano de
forma digna e fecunda. Deverá intensificar-se a reflexão sobre a fé, para
ajudar todos os crentes em Cristo a tornarem mais consciente e revigorarem a
sua adesão ao Evangelho, sobretudo num momento de profunda mudança como este
que a humanidade está a viver. Teremos oportunidade de confessar a fé no Senhor
Ressuscitado nas nossas catedrais e nas igrejas do mundo inteiro, nas nossas
casas e no meio das nossas famílias, para que cada um sinta fortemente a
exigência de conhecer melhor e de transmitir às gerações futuras a fé de
sempre. Neste Ano, tanto as comunidades religiosas como as comunidades paroquiais
e todas as realidades eclesiais, antigas e novas, encontrarão forma de fazer
publicamente profissão do Credo.
9. Desejamos que este Ano suscite, em cada crente, o anseio de confessar a fé
plenamente e com renovada convicção, com confiança e esperança. Será uma
ocasião propícia também para intensificar a celebração da fé na liturgia,
particularmente na Eucaristia, que é «a meta para a qual se encaminha a acção
da Igreja e a fonte de onde emana toda a sua força». Simultaneamente esperamos
que o testemunho de vida dos crentes cresça na sua credibilidade. Descobrir
novamente os conteúdos da fé professada, celebrada, vivida e rezada e reflectir
sobre o próprio acto com que se crê, é um compromisso que cada crente deve
assumir, sobretudo neste Ano.
Não foi sem razão que, nos primeiros séculos, os cristãos eram obrigados a
aprender de memória o Credo. É que este servia-lhes de oração diária, para não
esquecerem o compromisso assumido com o Baptismo. Recorda-o, com palavras
densas de significado, Santo Agostinho quando afirma numa homilia sobre a
redditio symboli (a entrega do Credo): «O símbolo do santo mistério, que
recebestes todos juntos e que hoje proferistes um a um, reúne as palavras sobre
as quais está edificada com solidez a fé da Igreja, nossa Mãe, apoiada no
alicerce seguro que é Cristo Senhor. E vós recebeste-lo e proferiste-lo, mas
deveis tê-lo sempre presente na mente e no coração, deveis repeti-lo nos vossos
leitos, pensar nele nas praças e não o esquecer durante as refeições; e, mesmo
quando o corpo dorme, o vosso coração continue de vigília por ele».
10. Queria agora delinear um percurso que ajude a compreender de maneira mais
profunda os conteúdos da fé e, juntamente com eles, também o acto pelo qual
decidimos, com plena liberdade, entregar-nos totalmente a Deus. De facto,
existe uma unidade profunda entre o acto com que se crê e os conteúdos a que
damos o nosso assentimento. O apóstolo Paulo permite entrar dentro desta
realidade quando escreve: «Acredita-se com o coração e, com a boca, faz-se a
profissão de fé» (Rm 10, 10). O coração indica que o primeiro acto, pelo qual
se chega à fé, é dom de Deus e acção da graça que age e transforma a pessoa até
ao mais íntimo dela mesma.
A este respeito é muito eloquente o exemplo de Lídia. Narra São Lucas que o
apóstolo Paulo, encontrando-se em Filipos, num sábado foi anunciar o Evangelho
a algumas mulheres; entre elas, estava Lídia. «O Senhor abriu-lhe o coração
para aderir ao que Paulo dizia» (Act 16, 14). O sentido contido na expressão é
importante. São Lucas ensina que o conhecimento dos conteúdos que se deve
acreditar não é suficiente, se depois o coração – autêntico sacrário da pessoa
– não for aberto pela graça, que consente de ter olhos para ver em profundidade
e compreender que o que foi anunciado é a Palavra de Deus.
Por sua vez, o professar com a boca indica que a fé implica um testemunho e um
compromisso públicos. O cristão não pode jamais pensar que o crer seja um facto
privado. A fé é decidir estar com o Senhor, para viver com Ele. E este «estar
com Ele» introduz na compreensão das razões pelas quais se acredita. A fé,
precisamente porque é um acto da liberdade, exige também assumir a
responsabilidade social daquilo que se acredita. No dia de Pentecostes, a
Igreja manifesta, com toda a clareza, esta dimensão pública do crer e do
anunciar sem temor a própria fé a toda a gente. É o dom do Espírito Santo que
prepara para a missão e fortalece o nosso testemunho, tornando-o franco e
corajoso.
A própria profissão da fé é um acto simultaneamente pessoal e comunitário. De
facto, o primeiro sujeito da fé é a Igreja. É na fé da comunidade cristã que
cada um recebe o Baptismo, sinal eficaz da entrada no povo dos crentes para
obter a salvação. Como atesta o Catecismo da Igreja Católica, «“Eu creio”: é a fé
da Igreja, professada pessoalmente por cada crente, principalmente por ocasião
do Baptismo. “Nós cremos”: é a fé da Igreja, confessada pelos bispos reunidos
em Concílio ou, de modo mais geral, pela assembleia litúrgica dos crentes. “Eu
creio”: é também a Igreja, nossa Mãe, que responde a Deus pela sua fé e nos
ensina a dizer: “Eu creio”, “Nós cremos”».
Como se pode notar, o conhecimento dos conteúdos de fé é essencial para se dar
o próprio assentimento, isto é, para aderir plenamente com a inteligência e a
vontade a quanto é proposto pela Igreja. O conhecimento da fé introduz na
totalidade do mistério salvífico revelado por Deus. Por isso, o assentimento
prestado implica que, quando se acredita, se aceita livremente todo o mistério
da fé, porque o garante da sua verdade é o próprio Deus, que Se revela e
permite conhecer o seu mistério de amor.
Por outro lado, não podemos esquecer que, no nosso contexto cultural, há muitas
pessoas que, embora não reconhecendo em si mesmas o dom da fé, todavia vivem
uma busca sincera do sentido último e da verdade definitiva acerca da sua
existência e do mundo. Esta busca é um verdadeiro «preâmbulo» da fé, porque
move as pessoas pela estrada que conduz ao mistério de Deus. De facto, a
própria razão do homem traz inscrita em si mesma a exigência «daquilo que vale
e permanece sempre». Esta exigência constitui um convite permanente, inscrito
indelevelmente no coração humano, para se pôr a caminho ao encontro d’Aquele
que não teríamos procurado se Ele não tivesse já vindo ao nosso encontro. É
precisamente a este encontro que nos convida e abre plenamente a fé.
(continua...)
Nenhum comentário:
Postar um comentário