UM PEQUENO DECÁLOGO
Artigo de Victor Codina
“Devemos afirmar que é uma ilusão pensar que as
reformas e mudanças eclesiais vêm exclusivamente de cima. A história nos ensina
que as grandes transformações da Igreja (como também da sociedade...) surgiram
debaixo para cima, a partir de onde ordinariamente age o Espírito: desde os
leigos, os pobres, as mulheres, a gente marginalizada. Cabe a todos renovar e
reformar a Igreja a partir do Evangelho, convertendo-nos a Jesus de
Nazaré e ao seu Reino. Sem a cooperação e a iniciativa da base, a
Igreja nunca vai mudar.”
A reflexão é do teólogo jesuíta Víctor Codina, em artigo
publicado no sítio espanhol Religión Digital, 20-07-2014. A
tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
Em 28 de fevereiro de 2013, Bento XVI abandonava
o Vaticano, de helicóptero, para dirigir-se a Castel
Gandolfo. Começava, assim, na Igreja católica o tempo chamado sede vacante,
que terminou no dia 13 de março de 2013 com a eleição de Jorge Mario
Bergoglio como Papa Francisco.
Fonte: http://bit.ly/1pbDEI3
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Mas, esta viagem de Bento XVI a Castel
Gandolfo não encerrava apenas o seu pontificado, nem significava
apenas uma substituição no Vaticano, mas suporia uma profunda mudança
eclesial.
Para compreender esta afirmação devemos nos
remontar ao tempo de João XXIII e à convocação do Concílio Vaticano
II, em 1959. O Vaticano II (1962-1965) significou o “réquiem do
constantinismo”, ou seja, a superação do estilo de Igreja da cristandade
vigente desde o século IV e que se reforçou e consolidou no tempo de Gregório
VII: uma Igreja convertida em uma grande instituição clerical, centralizada
em Roma, fechada ao mundo, única âncora de salvação, uma espécie de
grande pirâmide monárquica e vertical, triunfalista e dominadora.
O Vaticano II oferece outra imagem
de Igreja, Povo de Deus, que caminha com toda a humanidade rumo ao Reino de
Deus, que respeita a liberdade religiosa e reconhece que o Espírito do Senhor
dirige não apenas a Igreja católica, mas todas as Igrejas cristãs e todas as
religiões e todos os povos para a salvação. Daí nasceu a índole misericordiosa,
esperançosa e dialogante do Vaticano II, frente ao dogmatismo
intransigente e inquisitorial da Igreja cristandade. Foi um verdadeiro
Pentecostes, como João XXIII havia desejado e pedido.
Mas, este concílio inaugurado por João
XXIII e encerrado por Paulo VI logo suscitou
suspeitas, reações contrárias e medos. Criticaram-se os abusos e exageros
cometidos em nome do concílio, temia-se a perda da identidade eclesial,
preocupava o fato de que se pudesse chegar a uma ruptura e a uma divisão
eclesial, eclodiram sentimentos de saudade da velha e tradicional Igreja da
Cristandade, a Igreja das catedrais e das Sumas Teológicas...
Isto explica que os últimos anos do pontificado de Paulo
VI (alguns acreditam que já a partir da publicação da Encíclica
Humanae Vitae sobre a “pílula”, em 1968) e, sobretudo, nos
pontificados de João Paulo II e Bento XVI,
realizaram-se uma leitura e uma hermenêutica do Vaticano II mais
em continuidade com a tradição anterior do que com a novidade e o aggiornamento
que havia impulsionado o bom Papa João. A partir de
então o impulso conciliador se diluiu e houve freios em todas as instâncias
(liturgia, ecumenismo, colegialidade episcopal, autonomia das Igrejas locais,
responsabilidade laical, profetismo da vida religiosa, novos sinais dos tempos,
novas teologias, inculturação...) e se passou da primavera conciliar ao inverno
eclesial.
Sem dúvida, João Paulo II teve um
grande dinamismo geopolítico e queria reformar a Igreja e implantar o concílio,
mas mantendo inalterada a doutrina e a estrutura eclesial existente. Não é
casual que o Papa polonês fizesse parte do grupo minoritário do Vaticano
II que dissentia de muitas das propostas conciliares e defendia a
chamada “linha cracoviense”.Ratzinger por sua vez, apoiou
teologicamente o pontificado de João Paulo II e uma vez eleito
pontífice como Bento XVI buscou, sem dúvida, uma renovação eclesial,
mas a partir de uma filosofia e uma teologia tão ortodoxas e racionais que
fechavam o caminho para uma real inovação na Igreja.
Seria falso deduzir do que foi dito anteriormente
que o Vaticano II não produziu frutos positivos, mesmo em meio
ao inverno eclesial. Assim como seria falso acreditar que na época da
Cristandade não houve grandes elementos de vida e santidade. O Espírito não
deixa de vivificar sempre a Igreja e suscita continuamente movimentos de
reforma e de retorno ao Evangelho: nunca na Igreja faltaram santos e santas,
profetas e místicos, reformadores e renovadores. Mas não se pode ocultar que as
consequências eclesiais da postura neoconservadora do pós-concílio foram
funestas. Bento XVI, comentando o episódio evangélico da tempestade
acalmada, confessava:
“Também hoje a barca da Igreja com o vento
contrário da história, navega pelo oceano agitado do tempo. Tem-se muitas vezes
a impressão de que está para se afundar. Mas o Senhor está presente”.
Na realidade, não era apenas o vento adverso da
história que sacudia a barca eclesial, mas a própria estrutura da barca, muito
pesada e com muitas rachaduras. Se a isto acrescentarmos os abusos sexuais do
clero e os escândalos econômicos do Banco Vaticano,
compreender-se-á o descrédito a que havia chegado a Igreja e o êxodo crescente
de fiéis que abandonaram a Igreja. Não é estranho que Bento XVI,
com grande humildade, realismo e coragem, renunciasse e afirmasse: “Já não
tenho mais forças”.
(...continua)
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