A
EXPERIÊNCIA DE EMAÚS - Lc
24, 13-35
“Reconheceram Jesus quando Ele repartiu o
pão”
Talvez,
um dos relatos mais conhecidos de Lucas seja a história dos dois discípulos na
estrada de Emaús. Aqui temos o retrato das suas comunidades – vacilando na fé,
descrentes, desanimadas, sem sentir a presença do Ressuscitado entre elas.
Lucas procura reanimar o seu pessoal, mostrando que eles não estão abandonados
– muito pelo contrário, estão caminhando junto com a presença do Senhor que
venceu a morte.
Essa
história pode nos ajudar bastante hoje, pois nos indica como devemos usar a
Bíblia para animar a nossa caminhada. Jesus é o mestre da Bíblia, e aqui ele
ensina como aproveitar a Escritura para iluminar os problemas práticos da nossa
caminhada, e nos dar coragem na nossa missão de evangelizadores.
O
que temos aqui é realmente um pequeno drama em cinco atos – um drama que nos
mostra a pedagogia de Jesus. Vejamos mais de perto:
O primeiro ato: versículos 13-19a: “Introdução”
O
relato começa com as palavras “nesse mesmo
dia”. Devemos já fazer uma parada e nos perguntar “que dia”? Para
nós seria o dia da Ressurreição, mas para os dois discípulos era simplesmente o
terceiro dia da morte de Jesus! Dia de desânimo, de tristeza. “Os dois iam para um povoado chamado Emaús, distante
onze quilômetros de Jerusalém”. Aqui é bom lembrar que o bom judeu
não podia caminhar mais do que um quilômetro no dia de sábado. Portanto, era
impossível que eles viajassem no dia anterior. Domingo é a sua primeira
oportunidade para sair de Jerusalém, e aproveitaram bem – já estão voltando
para a sua casa. A cena começa com a desintegração da comunidade cristã. Tudo
acabou, a comunidade se dispersa, não há nem alegria nem esperança.
Quem
eram eles? Sabemos do relato que um se chamava Cléofas! E o outro? O Evangelho
de João nos conta que a irmã de Maria, mãe do Senhor, chamada Maria de Cléofas,
estava junto à cruz (Jo 19, 25). Não seria demais acreditar que os dois
discípulos fossem um casal, Cléofas e a sua esposa, voltando depois da
peregrinação pascal à Jerusalém. Nunca saberemos com certeza, mas é uma
hipótese agradável e possível. Pois, sendo assim, a descoberta da presença do
Ressuscitado dar-se-á num lar e não numa hospedaria anônima. Seria bem de
acordo com a valorização na obra de Lucas da Igreja Doméstica, a Igreja que se
reuniu nas casas, como fazem tantas Igrejas vivas de hoje.
De
repente, no caminho surge Jesus, sem que seja reconhecido. Com isso, Lucas quer
dizer que o Ressuscitado não é um defunto que voltou a viver – tem uma nova
maneira de ser, um corpo glorificado. É importante notar como Jesus se
comporta, através do verbos que Lucas usa. Ele “aproximou-se”, “caminhou com eles” e “perguntou”. Ele não veio “dando de dedo”,
nem dando explicações bíblicas. Ele criou um ambiente de fraternidade onde
fosse possível explicar tanto a vida como a Bíblia! Quantas vezes isso falta em
nossos grupos, nossas comunidades – não nos aproximamos uns aos outros,
mantemos distância! Não caminhamos juntos, queremos dar soluções sem conhecer a
realidade dos nossos irmãos e irmãs! E por isso mesmo, muitas vezes não têm
efeito as nossas reuniões, os nossos encontros bíblicos.
O
“ato” termina com a pergunta d’Ele: “O que é que vocês andam discutindo pelo
caminho” (v. 17), ou seja, Ele dá uma oportunidade para que eles exponham a sua
realidade, sem julgamento, sem moralismo. Ele parte da realidade dos dois.
Segundo ato: vv 19b-24: “Os discípulos falam”
Diante
da oportunidade de explicitar a sua realidade, Cléofas não titubeia. Ele expõe
com clareza a sua situação. Diante da morte de Jesus ele frisa uma coisa
importante: “nós esperávamos que ele fosse
o libertador de Israel”(v. 21) Eles “esperavam”, portanto não esperam mais nada. Aqui ressoam
traços de decepção, desilusão, desânimo, até de uma certa revolta contra Jesus,
pois todas as suas esperanças tinham sido desfeitas. Os seus sentimentos vão muito
além de uma simples tristeza!
É
importante notar também que Lucas explicita bem quem foi que matou Jesus – não
foi o povo, foram grupos de interesse bem definidos: “Nossos chefes dos sacerdotes e nossos chefes o
entregaram para ser condenado à morte, e o crucificaram”(v. 20). Para
não reduzir a morte de Jesus a uma fatalidade qualquer, ou a algo desejado pelo
Pai, é mister examinar mais profundamente esta afirmação do Cléofas. Jesus foi
morto, assassinado judicialmente pelos “chefes
dos sacerdotes” – um
grupo de sacerdotes saduceus, que dominavam o comércio do Templo, lucrando
muito com a exploração do povo através da religião, e que viu a sua hegemonia
ameaçada pela pregação e profetismo de Jesus. Também foi morto pelos “chefes” ou “magistrados”, ou seja, os membros do sinédrio, na maioria
pertencentes ao partido elitista dos saduceus (não dos fariseus), e
colaboradores com o poder romano, lucrando bastante com isso. Então Jesus foi
morto não por acaso, mas para defender os privilégios da elite dominante! A
cruz era a conseqüência lógica da vida de Jesus!
Outro
elemento importante é o fato de que eles sabiam do túmulo vazio – dois dos
apóstolos já tinham verificado a história das mulheres. Mas isso não dizia nada
para eles! Aqui se destaca que a nossa fé não se baseia num túmulo vazio! É a
nossa fé na Ressurreição que explica porque o túmulo estava vazio, e não o
túmulo que dá consistência à nossa fé!
Terceiro ato: vv 25-27: a Bíblia
Agora,
e só agora, depois de ter criado o ambiente e escutado a realidade, é que Jesus
usa a Escritura. Ele frisa que eles “custam
para entender e demoram para acreditar em tudo o que os profetas falaram”(v.
25). Notemos bem – não custaram para “saber”, mas para “entender e
acreditar”. Pois eram judeus piedosos, que, mesmo sendo analfabetos, conheciam
de cor os salmos e as profecias. O seu problema era que embora conhecessem o
livro da Bíblia, e também o livro da vida, eles não conseguiam ligar as duas
coisas. Então Jesus “explica”
as Escrituras – isso é, Ele não dá uma aula de exegese, mas faz a ligação entre
a vida deles e a Bíblia, iluminando a sua realidade com a Palavra de Deus!
Quarto ato: vv 28-32: a partilha
Chegando
em Emaús, os discípulos convidam Jesus para entrar a e jantar com eles. Se
realmente se trata de um casal, então seria entrar na sua casa, no aconchego do
seu lar,
e
não numa hospedaria, como normalmente a gente supõe. E aqui temos o ponto
central da história – pois até agora a explicação bíblica, por tão bonita que
pudesse ter sido, não mudou a vida deles. Mas agora sim. Jesus se põe a mesa e:
“tomou o pão e abençoou, depois o partiu e
deu a eles”(v. 30). De propósito, Lucas usa as palavras que
recordam a Última Ceia. É a experiência da partilha, da comunidade! Agora o
milagre acontece: “Nisso os olhos dos discípulos
se abriram e eles reconheceram
Jesus” (v. 31). E,
neste mesmo momento, Jesus desaparece da frente deles! Por que? Porque, uma vez
feita a experiência da presença do Ressuscitado no meio deles, eles não
precisavam mais da “muleta” da sua presença física. E agora eles caem dentro de
si e reconhecem que: “Não estava o nosso
coração ardendo quando ele nos falava pelo caminho, e nos explicava as
Escrituras?”(v. 32). A Bíblia é capaz de fazer “arder o coração”, mas para “abrir os olhos” é necessário a experiência de comunidade, de
celebração, de partilha!
Quinto ato: vv 33-36: a missão
Se a
história terminasse aqui, seria a história de uma experiência bonita feita por
duas pessoas. Isso não basta. Tal experiência da presença do Senhor
Ressuscitado exige a formação de uma comunidade fraterna de missão. Os mesmos
dois que de manhã fugiam de Jerusalém, pois era o lugar da morte, da
perseguição, do fracasso, de tarde se põem no caminho de volta! O que mudou em
Jerusalém durante o dia? Nada! Continua sendo o lugar de perigo, de morte, de
perseguição. Mas mudou a cabeça dos dois. Em lugar de uma fé pré-pascal, eles
agora têm uma fé pós-pascal. Em lugar de desânimo, há entusiasmo e coragem,
pois experimentaram a presença de Jesus Ressuscitado. E a história que começou
com a comunidade se desintegrando, termina com a comunidade se reintegrando, se
unindo, na paz e na alegria, pois puderam confirmar:“Realmente o Senhor ressuscitou, e apareceu a Simão” (v.
34). E os dois de Emaús puderam
contar: “O que tinha acontecido no caminho,
e como tinham reconhecido Jesus quando Ele partiu o pão” (v. 36).
Esta
história pode servir para nós como paradigma de um círculo bíblico, grupo de
reflexão, ou seja qual for o nome que nós damos às nossas pequenas comunidades.
Jesus liga quatro elementos essenciais – a realidade, a Bíblia, a celebração
partilhada e a comunidade. E é na união entre estes elementos que se revela a
presença do Ressuscitado e a vontade de Deus. É na interação destes aspectos da
vida cristã que a Bíblia se torna: “Lâmpada para os meus pés, e luz para o meu
caminho” (Sl 119, 105). Procuremos unir estes elementos nas nossas reuniões e
encontros, e descobriremos como se concretiza o desejo do Salmista: “Oxalá
vocês escutem hoje o que Ele diz” (Sl 95, 7)
Por Pe. Valdiran dos Santos
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